domingo, 10 de maio de 2009

PRISÃO CAUTELAR: DRAMAS, PRINCÍPIOS E ALTERNATIVAS
A LÓGICA DO SOFRIMENTO

Dica de livro

Autor: Rogério Schietti Machado Cruz

Lumen Juris
Ao abrir o ano acadêmico na Universidade de Pisa, em 1862, CARRARA (1955, p. 109) o nome mais importante da história do Direito Criminal pós-Beccaria, iniciou sua aula com a seguinte exclamação-indagação:
“PUNIR! ETERNAMENTE PUNIR! Será, pois, uma perpétua herança da progenitura de Adão esse triste espetáculo de homens dominados por malvadas paixões, que desconhecem os direitos de seus irmãos; e de outros homens que, com consciência de agir legitimamente, reagem contra os ofensores, às vezes ainda mais furiosos, para despojá-los de seus direitos? Essa reciprocidade incessante de violências e de dores será uma lei inalterável, um vórtice do qual o gênero humano não poderá jamais esperar uma saída na sua peregrinação terrena?"
CARRARA vale-se de todo o seu espírito científico, inquieto, e de toda a sua sensibilidade, aguda, para mostrar como a reação dos assim chamados "bons" contra os infratores do direito tem sido, inexoravelmente, marcada, desde o seu episódio inicial com o fratricídio cometido por Caim, pela inflição de um castigo, decorrente de uma "necessidade humana".
A leitura de CARRARA mostra familiaridade com a visão de mundo cristã (algo que, no século seguinte se expressaria com igual intensidade por outro prócer do Direito, CARNELUTTI) em virtude da qual se acreditava – não mais? – na racionalidade e na essência divina do homem civilizado. Dizia Carrara que “não se conduz o homem para o bem com o terror. Deus lhe concedeu a razão e a aspiração da justiça para que com elas se fortalecesse na luta contra as paixões perversas. A razão, a simpatia, os sentimentos nobres e generosos, o exemplo, são o arsenal infalível no que deve ter fé todo aquele a quem lhe toque o pesado ofício de governar as multidões pelo caminho do Direito” (CARRARA, 1955, p. 128).
Ao final de sua memorável lição, CARRARA (1955, p. 129) responde à indagação formulada no início da aula, confirmando que punir é “o destino da humanidade”. Porém, “não se punirá já com ímpeto de caprichoso furor, senão com amor fraterno. Não se punirá já aviltando ou destruindo a personalidade humana, senão realçando no homem o sentimento de sua própria dignidade, e chamando-o de novo ao amor do bem. Não se punirá já para satisfazer fanáticos delírios ou exigências tirânicas, senão para tutelar a ordem exterior, que Deus mesmo previu ab eterno e impôs à humanidade”.
Decerto que as palavras proferidas pelo incomparável professor de Pisa ecoam no espírito de todo profissional do Direito que acompanha o drama e o sofrimento que a prática de um crime inflige à vítima e seus familiares, impotentes diante de um ato que, muitas vezes, parece contradizer a essência divina do homem. De outro ângulo, gera inquietação à mente de quem se debruça sobre o tema o fato de ainda não termos sido capazes, em pleno Século XXI, de encontrar mecanismos mais civilizados e racionais para responder ao ato criminoso.
Ao contrário do que ocorreu ao longo da trajetória humana na Terra, quando se pensa, nos dias atuais, em punição penal, a primeira alternativa imaginada – e a efetivamente mais utilizada – é a prisão. É como se punição fosse sinônimo de prisão, ou como se não fosse possível punir alguém de outra forma que não lhe impondo a privação de sua liberdade.
Tentemos, então, fazer uma análise serena do tema, sem nos envolvermos com a carga emotiva impertinente a qualquer abordagem que se pretenda séria e voltada à reflexão neutra, nem sempre condutora a conclusões que pareçam simpáticas ou agradáveis à comunio opinio doctorum ou mesmo à opinião pública.
As assim chamadas penas alternativas – multa, prestação de serviços à comunidade, restrições de direitos – são aceitas como formas menos aflitivas de punição, mas, no imaginário popular, somente quando o criminoso é recolhido a uma prisão há, efetivamente, a esperada punição.
Aceita-se que alguém que cometeu um pequeno furto, um estelionato, uma receptação, uma falsidade ideológica ou lesões corporais, possa "pagar" a sua pena comparecendo regularmente a um hospital ou a um asilo, para auxiliar no atendimento aos usuários ou para exercer funções contábeis ou de secretaria. A mesma punição, todavia, não é aceita se se cuidar de autor de estupro, homicídio, roubo ou tráfico de entorpecentes.
É que – isso parece óbvio – a sociedade tolera formas de punição alternativa à prisão para autores de crimes de menor monta, mas para quem pratica crimes considerados muito graves pelo sentimento popular somente a prisão se mostra capaz de atender às expectativas punitivas. Não necessariamente porque temem possa o criminoso, permanecendo em liberdade, voltar a delinqüir e pôr em risco a segurança da comunidade. Isso também conta, mas o que parece transparecer no sentimento popular é um ardoroso desejo de que autores de crimes mais graves, ou mais repudiados pela comunhão social, sofram proporcionalmente ao mal causado por seus atos, um desejo, nem sempre assumido ou exteriorizado, de que o criminoso receba "as penas do inferno".
De nada importa se o condenado eventualmente já esteja, em tese, preparado para voltar a ser livre; irrelevante se ele, efetivamente, arrependeu-se do que fez ou se já passou alguns anos preso. O que verdadeiramente importa é que ele permaneça recolhido a um presídio, por muitos e muitos anos, único modo de se entender suficiente a punição.
Não é por outro motivo que muitos se indignam quando o autor de um desses crimes mais nefastos é posto em liberdade condicional, ou mesmo obtém autorização para o trabalho externo, após cumprir uma parte da pena, que se julga muito pequena para qualquer benefício. A opinião geral é de que esses criminosos precisam passar muitos anos na penitenciária, para que possam estar "quites" com a sociedade e serem novamente reintegrados ao convívio extra-muros.[1]
Basta ver, a propósito, o que ocorre em julgamentos do Tribunal do Júri. Quantas vezes não se vêem populares indignados mesmo quando o acusado foi condenado a penas elevadas? Sabe-se que o condenado, em alguns casos, não cumprirá, recluso, sequer um terço desse tempo, dada a benevolência de nossa Lei de Execuções Penais. Mas, ainda assim, por que a sociedade espera que alguém fique preso por tão longo período? Simplesmente porque se deseja que essa pessoa possa "sentir" na própria carne – pelo sacrifício de sua liberdade – a dor que causou à vítima e aos seus familiares. Essa é a “lógica do sofrimento” a que estamos sujeitos.
Semelhante sentimento, saliente-se, é fortemente influenciado por setores da mídia e da política, que deliberadamente infundem na população uma contínua sensação de terror e de insegurança, campo fértil para afirmar a idéia do encarceramento como panacéia para os problemas da criminalidade urbana. O leitmotiv dos políticos de plantão, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o medo do crime violento passa, como refere WACQUANT (2001, p. 75), a ser "lock'em up and throw away the key" (tranque-os e jogue fora a chave).
O que tem isso a ver com o tema da prisão cautelar? Tem tudo a ver, porque quando se recolhe alguém preso a uma delegacia ou a um estabelecimento prisional, não está a comunidade a indagar se se cuida de prisão-cautela ou prisão-pena; se o preso está cumprindo pena ou se tão somente está sendo preso de modo ainda provisório. Esses detalhes técnico-jurídicos não apenas são incompreensíveis à população, como também lhe são irrelevantes. O que vale para o homem do povo é a visão do autor de um crime sendo privado de sua liberdade logo em seguida ao fato, o que, de algum modo, já lhe soa como uma punição.
Mantê-lo solto implica não apenas a idéia da impunidade, mas, além disso, a idéia de que o crime não encontrou qualquer resposta efetiva por parte do Estado. A sensação de insegurança, de medo, de incredulidade, de ódio, aumenta, porque não se vê uma reação imediata e eficiente do Estado a um comportamento que incomodou ou indignou certa comunidade. Efetuada a prisão, acalmam-se ou aliviam-se tais sentimentos, diminuindo a pressão e a angústia do povo. Essa, sem dúvida alguma, é a lógica que prevalece no tema das prisões, e que perpassa nas mentes das pessoas de uma maneira geral.
Registre-se, então, que essa lógica do sofrimento é plenamente compatível com nossa cultura, e não pode merecer qualquer reparo, porque herdamos, ao longo da trajetória humana no planeta, esse modo de pensar, que provavelmente ainda perdurará por muito tempo, antes que se cumpra o prognóstico de Carrara.
[1] Essa forma de ver o processo penal nos faz lembrar do pensamento de ANATOLE FRANCE, referido por TOSTES MALTA (1935): "Os interesses da justiça são sagrados; os interesses do delinqüente, duas vezes sagrados; os interesses da sociedade, três vezes sagrados".

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